DOM QUIXOTE DE LA MANCHA, DE CERVANTES.

                  
O ataque aos carneiros - G. Doré.                 O Elmo de Mambrino - G. Doré.

Dom Quixote de La Mancha – tal como toda obra clássica – espanta pela sua atualidade. Trata de um velho que, de tanto ler livros de cavalaria, acabou por perder o juízo ao ponto de se julgar cavaleiro andante e sair pelo mundo à cata de aventuras capazes de elevar o seu nome e torná-lo conhecido. Leva consigo o humilde Sancho, que crê que o amo haverá de lhe conceder o governo de uma ilha.

Dois momentos merecem ser destacados. Um deles situa-se no capítulo XVIII. Haviam acabado de sair da venda a qual Dom Quixote acreditava ser castelo quando se deparam com uma grande poeirada a se levantar pelo ar. O fidalgo, julgando ser aquilo dois exércitos prestes a se chocar, vê no fato uma grande aventura. Acontece que a poeira era levantada por carneiros e ovelhas. Sancho o alerta para tal, mas o cavaleiro – insistente em sua tese – ataca os rebanhos. Os pastores, vendo aquela loucura, atacam Dom Quixote com fundas, quebrando-lhe alguns dentes. Depois de tudo terminado, o velho afirma a Sancho que aqueles carneiros eram mesmo exércitos, mas que foram transformados em carneiros por um encantador, inimigo seu, tudo com o fim de turvar a sua glória.

Já no capítulo XXI encontramos a aventura do elmo de Mambrino. Chovia. Dom Quixote e Sancho avistam um homem a cavalo. Este leva algo reluzente na cabeça. Imediatamente o cavaleiro julga se tratar do famigerado elmo encantado e parte contra o homem. Ele foge, deixando cair de sua cabeça uma bacia. Sancho ri do amo e este coloca a bacia na cabeça na certeza de se tratar de um elmo.
A atualidade dessa obra, a meu ver, reside no fato de levarmos conosco algo de Dom Quixote. Pois a ideia de que os rebanhos são exércitos e que uma bacia é um elmo encantado nada mais é do que uma esperança; uma esperança que alimenta o pensamento. Quantos de nós não vivemos de esperanças? Quantos de nós olhamos para as coisas mais banais, como imagens ou coisas formadas ao acaso, e as julgamos artefatos divinos? Quantas vezes atribuímos um sucesso conquistado com nossos esforços à magia de seres superiores? Coisas que são naturais, mas que – por falta de um mínimo de senso de observação – são transformados em fenômenos espantosos e grandes mistérios.

Há algo de Dom Quixote em nós. Esse ato de ver aquilo que se quer ver, esse não acabar mais de tomar como reais histórias inventadas e fazer delas um norteamento para a vida, uma realidade objetiva, um medo; essa luta homérica contra inimigos imaginários, essa busca incessante por algo que dizem que existe e que mal se compreende... tudo isso cheira à Dom Quixote e traz a sensação de que o mundo vive em uma perene esquizofrenia.

Não é de se estranhar que a obra de Cervantes continue viva.

DOSTOIÉVSKI E O GATO

Um gato folgava sobre minha cama.
E, molemente, lambia o próprio pelo.
Foi quando peguei um livro de Dostoiévski
E dei-lhe um tremendo tapão na capa.
O gato saltou de susto,
Olhou-me com os olhos arregalados
E fugiu.
É... eu sei...
O gato se assustaria também se pudesse ler!
Dostoiévski não assustaria apenas os gatos!
Assusta gente...
Em parágrafos que descrevem o bicho-homem
Ao mesmo tempo que dizem “não” ao convencional.
Sim... o russo apresenta as loucuras incubadas em nós,
Meus amigos!

O SONHO DO POETA

      O Sonho do Poeta - Paul Cézanne.

Muitos seres costumam povoar o nosso imaginário. Desde pequeninos habituamos a fantasiar os nossos monstros e anjos como se precisássemos deles para viver, como se necessitássemos de algo do qual fugir e perante o qual se assombrar. A infância é habitada pelos monstros do quarto, que insistem em se manifestar à noite. Mas a imaginação das crianças é sensível demais e pode ser excitada pelo objeto mais insignificante.


Ao longo da vida novos seres vão paulatinamente compondo nosso universo simbólico, conferindo-lhe feições muito particulares, que variam de acordo com as idiossincrasias de cada um. Eu, como não poderia de deixar de ser, tive e tenho as minhas idiossincrasias.

“O Sonho do Poeta”, de Paul Cézanne, povoou boa parte da minha adolescência. Há um quê físico e ao mesmo tempo espiritual nessa imagem, um quê de puro e ao mesmo tempo lascivo que sempre me impressionou. O poeta sonha com um ser amado, talvez o anjo que vem lhe visitar, mas às vezes é como se ele estivesse consciente do presente que recebe do ser alado, como se apenas fingisse estar adormecido e, muito galhardamente, se visse na iminência de jogar a cabeça para trás implorando um beijo mais ousado.

O anjo é irreal, por demais espiritualizado, mas às vezes me parece demasiado físico. Em certa época ele me inspirava medo, um estranho receio... estranho apenas, mas que com o tempo se desvaneceu! Hoje tudo o que vejo nele é beleza. O seu pescoço, branco e comprido, é chamativo; as suas asas – parcialmente iluminadas – conferem ao ambiente do meu imaginário um frescor que eu raramente poderia encontrar em uma obra de arte.

Naquele tempo por duas ou três vezes durante a noite e pouco antes do sono eu me pegava imaginando o beijo da criatura alada de Cézanne...

Acreditem em mim: foi a ilusão mais bela que cultivei em meus tempos de adolescente. E embora tudo isso pareça um tanto quanto piegas, creio que tem lá a sua graça!

CONSELHO.

Meu filho, levante esse corpo surrado
E diga logo: “Já perdi o bastante!”
Retire essa carcaça do sol
E coloque-a na sombra merecida dos derrotados.
Pois se não há um facho de esperança
Não há porque inventar e se ludibriar.
O tempo não é um bem que se desperdice
E a tua beleza, meu filho, merece preservação.
Já que o universo lhe disse “não” nisso ou naquilo,
Procure por um “sim” naquele outro ou acolá!
Todos os dias respiramos bolhas de milagres
E não há porque se desdenhar.
Destruir-se? Açoitar-se?
Repouse e viva consigo mesmo
Antes de retomar um mundo que o espera.
Levante, criança machucada...
A ferida cicatrizará. Será uma lembrança remota!
E parecerá um sonho que você tenha sangrado um dia!

O JARDIM DAS TRISTEZAS.

  Não olhe ao seu redor no jardim das tristezas,
Não se admire com as rosas bonitas,
Não sinta a grama sob os seus pés.
Ande apenas, como quem quer chegar ao portão da saída.
Não olhe,
Não se admire,
Não sinta...
O jardim das tristezas habita a vida de cada um
E cabe a cada um saber como desdenhá-lo.

"A CASA SOTURNA", DE CHARLES DICKENS (ESTER SUMMERSON E A PERDA DA BELEZA FÍSICA)

A Casa Soturna, romance de Charles Dickens (Século XIX) é uma sátira ao sistema jurídico da Inglaterra oitocentista. Aponta para a lentidão dos processos e a forma através da qual os mesmos acabam por absorver fortunas e existências. O romance gira em torno do caso Jarndyce, de uma herança deixada e sobre a qual acontecem recursos, discussões e julgamentos que não se resolvem.
Uma das protagonistas é Ester Summerson, uma jovem criada sem conhecer os próprios pais. Trata-se de uma personagem a qual podemos dar o nome de heroína. Seus pensamentos – presentes no seu diário – bem como suas atitudes revelam uma pessoa equilibrada, bondosa e que, acima de tudo, parece estar mais preocupada com os demais do que consigo mesma. O seu desvelo para com Ada é quase que maternal.
O que mais me chama a atenção nessa obra é o momento no qual Ester adoece e se torna temporariamente cega. Tempos depois ela recupera a visão, mas a sua aparência não é mais a mesma – a mulher bonita de antes se torna feia; característica que haveria de acompanhá-la por toda a vida. Ester se depara com uma situação que a assusta; há como que uma perda de sua própria identidade. Todavia isso ocorre apenas no princípio. Com o tempo ela parece se adaptar ao seu novo rosto e não o vê como um problema. Ester Summerson é a típica personagem que cultiva valores interiores. Talvez essa prática tenha amortecido o impacto negativo de sua transformação física.
É de se notar, todavia, a que Ester contraiu a doença por conta de uma ajuda que pretendia prestar ao garoto Jo, no contato que teve com ele. Notemos que ela adoece devido à prática de uma boa ação.
Esse momento da obra de Dickens é relevante para que pensemos a respeito da ideia de bondade e a certeza que quase sempre temos de que uma boa ação é determinante para que tenhamos recompensas. Toda a “literatura” comercial, tal como as novelas perante as quais muitos se deixam hipnotizar, trazem histórias eivadas de maniqueísmos e marcadas por finais felizes. Cabe indagar até que ponto esse tipo de narrativa imita de fato a vida. Cabe indagar se o fato de sermos bons é uma garantia de recompensas. No caso de Ester – pelo menos na passagem destacada – a resposta é “não.” Obviamente ela soube contornar o problema porque dispunha de estrutura emocional para isso – a sua nobreza de espírito foi uma ferramenta usada por ela em seu próprio favor. Nesse caso houve esforço da parte da personagem, um esforço puramente humano. Nada mais louvável, portanto. Mas o que coloco em cheque nessa reflexão é a relação irracional tantas vezes feita entre bondade e recompensa, maldade e punição. Tais relações – religiosamente tidas como verdades absolutas – nem sempre procedem e a certeza do contrário pode se tornar fonte de grandes frustrações. As meta narrativas trazem certa carga de perigo e, quando não questionadas, podem – dependendo da situação – ser nocivas.
Talvez o pensamento crítico em relação a nós mesmos e no que tange ao mundo seja uma forma de lidarmos com as situações imprevistas. Ester teve um final feliz porque foi sempre coerente consigo mesma, não se deixando tragar por uma situação desconfortável.
Sinceridade perante o espelho (e Ester que o diga!). Eis uma virtude a ser praticada... eis um ato que forja seres humanos.

BAUDOLINO, DE UMBERTO ECO (A GÊNESE DOS MITOS)

Através do livro Baudolino, de Umberto Eco podemos perceber um possível processo da criação dos mitos. A história se é ambientada para a Idade Média (Séculos XII e XIII) e nela Baudolino, um camponês criado por Frederico I chega em 1204 a Constantinopla que, naquele momento, era invadida pela Quarta Cruzada. Ele conhece Nicetas – um Historiador – e o salva a vida. A partir de então tornam-se amigos e Baudolino passa a contar a sua História. Todavia, Baudolino é um grande mentiroso. A História contém aventura e humor. A história envolve a busca pela terra do Preste João e do Santo Graal, além de criaturas que, segundo as descrições medievais, existiriam no Extremo Oriente, próximas ao Paraíso Terrestre. Baudolino e seus amigos forjam relíquias e criam histórias que acabam por se tornar grandes verdades para as pessoas da época.
A leitura de Baudolino nos permite algumas reflexões e questionamentos. Por exemplo: de onde vem tudo aquilo que consideramos sagrado? Como foi gestado? Esse status de santidade dado a determinadas coisas ou a determinadas narrativas deve mesmo ser acreditado tão cegamente? Coisas! Podemos atribuir às coisas as mais diversas características. Posso pegar um pedaço de pena e dizer foi usado por Shakespeare na escrita de suas obras, mas essa pena pode ter sido retirada da galinha que comi no almoço. Podemos chamar as coisas com os nomes que bem quisermos. A questão é: haverá gente suficientemente ingênua para acreditar? Baudolino conseguia encontrar essas pessoas ingênuas; conseguiu, dentre outras coisas, quando pegou uma taça de madeira da sua casa e disse se o santo graal.
Pergunto-me então se a crença sem nenhuma reflexão deve ser tomada como norte para interpretações de mundo; pergunto-me quantas pessoas mal intencionadas já não fizeram uso da boa fé dos demais para difundirem mitos cujo fim é nada menos do que o proveito próprio. Penso somente nessas pessoas simples, sem condições intelectuais, sem uma estrutura verbal elaborada capaz de defendê-los desse bombardeio de imagens e desse espetáculo de lavagem cerebral praticado em certos lugares. “Bem aventurados os que creem sem ver...” – disse Jesus ressuscitado. Não seria essa ideia, a pessoa que a profere e na condição na qual profere – na verdade, que dizem que proferiu – mais um dos muitos mecanismos de controle? Um mecanismo que visa impedir a reflexão? Talvez...
Uma história, uma mentira repetida muitas vezes e bem difundida se torna verdade; todavia, cabe observar que até mesmo as histórias inventadas acabam fugindo ao controle de quem as criou, tornando-se grandes mitos capazes de mover multidões.
Talvez muito do que temos hoje em termos de crença ou mesmo de pensamento tenha passado pro esse processo: uma história inventada, ou mesmo fruto de algum mal entendido, mas que foi tomado como grande verdade e propagada como tal. Admitindo essa possibilidade o que seria de nosso pensamento se essas supostas “histórias” não tivessem existido ou tivessem sido criadas outras ou as mesmas histórias criadas tivessem tido outras interpretações? Estaríamos melhores? Seriamos piores do que somos?... Enfim... penso que jamais saberemos. Fica apenas a pergunta... e é tudo.

SONETO DO AMOR MALDITO

Amor, que me tornastes descuidado...
E de ti, serenamente, um cativo!
Sou de mim mera sombra, pois não vivo...
Eis pois, incauto amor, o meu estado!

Chorai a dor alheia, amor malvado,
No imenso resplendor de um mal altivo;
Um mal que te consuma, amor lascivo...
Um mal que te ensandeça, desamado!

Se um dia lamentares os teus males
Terei o mais contente coração
E a ti não chorarei uma saudade.

Nesse instante só imploro que te cales...
Pois se, vivo, és pra mim uma prisão,
Terei, com tua morte, a liberdade!