"A CASA SOTURNA", DE CHARLES DICKENS (ESTER SUMMERSON E A PERDA DA BELEZA FÍSICA)

A Casa Soturna, romance de Charles Dickens (Século XIX) é uma sátira ao sistema jurídico da Inglaterra oitocentista. Aponta para a lentidão dos processos e a forma através da qual os mesmos acabam por absorver fortunas e existências. O romance gira em torno do caso Jarndyce, de uma herança deixada e sobre a qual acontecem recursos, discussões e julgamentos que não se resolvem.
Uma das protagonistas é Ester Summerson, uma jovem criada sem conhecer os próprios pais. Trata-se de uma personagem a qual podemos dar o nome de heroína. Seus pensamentos – presentes no seu diário – bem como suas atitudes revelam uma pessoa equilibrada, bondosa e que, acima de tudo, parece estar mais preocupada com os demais do que consigo mesma. O seu desvelo para com Ada é quase que maternal.
O que mais me chama a atenção nessa obra é o momento no qual Ester adoece e se torna temporariamente cega. Tempos depois ela recupera a visão, mas a sua aparência não é mais a mesma – a mulher bonita de antes se torna feia; característica que haveria de acompanhá-la por toda a vida. Ester se depara com uma situação que a assusta; há como que uma perda de sua própria identidade. Todavia isso ocorre apenas no princípio. Com o tempo ela parece se adaptar ao seu novo rosto e não o vê como um problema. Ester Summerson é a típica personagem que cultiva valores interiores. Talvez essa prática tenha amortecido o impacto negativo de sua transformação física.
É de se notar, todavia, a que Ester contraiu a doença por conta de uma ajuda que pretendia prestar ao garoto Jo, no contato que teve com ele. Notemos que ela adoece devido à prática de uma boa ação.
Esse momento da obra de Dickens é relevante para que pensemos a respeito da ideia de bondade e a certeza que quase sempre temos de que uma boa ação é determinante para que tenhamos recompensas. Toda a “literatura” comercial, tal como as novelas perante as quais muitos se deixam hipnotizar, trazem histórias eivadas de maniqueísmos e marcadas por finais felizes. Cabe indagar até que ponto esse tipo de narrativa imita de fato a vida. Cabe indagar se o fato de sermos bons é uma garantia de recompensas. No caso de Ester – pelo menos na passagem destacada – a resposta é “não.” Obviamente ela soube contornar o problema porque dispunha de estrutura emocional para isso – a sua nobreza de espírito foi uma ferramenta usada por ela em seu próprio favor. Nesse caso houve esforço da parte da personagem, um esforço puramente humano. Nada mais louvável, portanto. Mas o que coloco em cheque nessa reflexão é a relação irracional tantas vezes feita entre bondade e recompensa, maldade e punição. Tais relações – religiosamente tidas como verdades absolutas – nem sempre procedem e a certeza do contrário pode se tornar fonte de grandes frustrações. As meta narrativas trazem certa carga de perigo e, quando não questionadas, podem – dependendo da situação – ser nocivas.
Talvez o pensamento crítico em relação a nós mesmos e no que tange ao mundo seja uma forma de lidarmos com as situações imprevistas. Ester teve um final feliz porque foi sempre coerente consigo mesma, não se deixando tragar por uma situação desconfortável.
Sinceridade perante o espelho (e Ester que o diga!). Eis uma virtude a ser praticada... eis um ato que forja seres humanos.